Sandro Sargentim*
Nas últimas décadas muito se discute e se estuda sobre como
avaliar, treinar e qualificar os treinos dos futebolistas. As análises são
todas válidas, pois através delas, podemos saber com precisão como que o atleta
de futebol se desloca, e de que forma, com qual intensidade, essa ação motora
ocorre.
Um detalhe, contudo, é geralmente esquecido nas linhas de
pesquisas e especialmente na sua aplicação prática: a especificidade dos
treinos para atletas de futebol.
É comum observarmos clubes estruturados, com diversos
profissionais de alto nível, compondo os departamentos médico, fisiológico e
nutricional, aplicando treinamentos retrógrados e defasados com métodos
inespecíficos para o movimento do futebolista em campo, tais como corrida longa
contínua ou intervalada, treinos em caixas de areia ou na praia, e exercícios
de musculação com aparelhos, em especial em cadeia cinética aberta.
As análises do volume e da intensidade do deslocamento do
futebolista em um jogo são simples de ser entendidos e assimilados.
Os estudos recentes demonstram que, apesar do atleta de
futebol se deslocar mais que 9 km em um jogo, a fase ativa da partida, onde de
fato o atleta atua e decide o jogo de futebol (Sargentim, 2010), é disputada em
uma metragem inferior a 1,5 Km, sob alta intensidade (Di Salvo e cols., 2007).
O futebolista permanece andando, caminhando, ou trotando sob
leve intensidade cerca de 80 a 85% do jogo (Bangsbo, 2006). Nessa fase, a fase
passiva, é o momento em que os futebolistas atuam sim no jogo de futebol, mas
não decidem ofensiva e defensivamente o jogo. Nesse momento os atletas se
recuperam dos estímulos fortes, intensos, dinâmicos e especialmente ultracurtos
que compõem a fase ativa de futebol.
Os gestos específicos do futebolista são intensos e curtos
não ultrapassando 4 segundos de execução (Helgerud e cols., 2001). Para cada
ação motora de alta ou altíssima intensidade, o atleta de futebol recupera em
uma partida em média 90 segundos (Hoff, J e Helgerud, 2004).
Ao analisar e compreender esses dados através dos estudos
científicos coletados em jogos oficiais de primeiro escalão do futebol mundial,
o questionamento aparece: Como ainda é possível profissionais que atuam
aplicando treino no futebol, aplicarem treinos sem a menor transferência para
as características do desporto?
O futebolista acelera em distâncias máximas de 20 metros em
um jogo de futebol (Gatz, 2009), contudo a maior parte dos gestos realizados em
aceleração não ultrapassa 10 metros em linha reta. As ações em velocidade na
maior parte das vezes acontecem de forma acíclica, com mudança de direção, se caracterizando
por desacelerações e novas acelerações na mesma ação.
Com esses dados em mãos podemos pontuar que os gestos
específicos dos futebolistas em campo são caracterizados por uma reação rápida
e curta com a mudança de direção, novamente potencializando a necessidade da
reação rápida dos componentes neuromusculares dos futebolistas.
Esses gestos rápidos de aceleração e desaceleração são
produtos da otimização das derivações da força explosiva, conhecido como um
fenômeno natural definido como ciclo alongamento-encurtamento, que tem como
regra básica a troca instantânea e precisa da ação excêntrica para concêntrica,
também conhecida como pliometria (Komi, 2006).
Essa resposta transitória intensa, rápida e precisa, é
caracterizada como a principal característica para a velocidade de reação e das
respostas rápidas, essenciais para futebolistas.
Portanto, com base nesse panorama, como é possível pensarmos
que times de futebol ainda se preocupam em correr em linha reta de forma
cíclica contínua ou intervalada, se o jogo de futebol é caracterizado por
acelerações curtas, desacelerações e gestos específicos com alta intensidade e
curtas durações, com um período longo de recuperação?
Nesse caso poderei exemplificar a citação bem humorada, mais
pertinente feita por Vitor Frade citada no livro do Bruno Pivetti “Para se
tocar o piano, ninguém visualiza o pianista correndo em volta do referido
instrumento musical para adquirir resistência no intuito de produzir belas
melodias” (Pivetti, 2012).
Para elaborarmos um treino, independente do desporto,
precisamos antes de focarmos em sobrecarga, individualidade biológica,
parâmetros de avaliação física, entre outros igualmente importantes, o objetivo
central e primordial deve ser elaborar treinos específicos para cada
modalidade.
O futebol é um esporte e deve ser treinado seguindo
princípios básicos e essências do treinamento desportivo. Não podemos aplicar
treinos seguindo intuições ou padrões pré-definidos de acordo com experiências
anteriores especialmente copiando treinos realizados nas décadas passadas.
Tudo evolui, desde a tecnologia, medicina, meios de
transporte, comunicação, entre tantos. Os meios de aplicação dos treinos devem
seguir sempre um processo de evolução e atualização, desde que siga critérios
bem definidos e pautados dentro de diretrizes voltadas para cada área
especifica.
Nesse caso não quero pontuar quem está certo nem errado.
Longe disso. O objetivo dessa discussão é esclarecer uma atualização dentro do
processo de treinamento específico no futebol.
O treinamento desportivo é pautado sob alguns princípios os
quais se destacam a especificidade, a individualidade biológica e a sobrecarga.
Não é possível definirmos qual princípio do treinamento é o
mais importante em relação ao outro, todos têm sua importância igualitária, e
se completam de forma interdependente. Contudo antes de individualizarmos o
treino e definirmos uma sobrecarga ideal, um fator é essencial para pontuarmos
de forma exata nossa aplicação dos meios de treinamento.
O princípio da especificidade vem ao encontro dessa
necessidade de simular os exercícios de acordo com a realidade e as demandas de
cada modalidade. Isso não é novidade, há muitas décadas atrás Verkhoshanski já
dizia “ deve se treinar como se joga e se compete…” (Verkhoshanski,1996).
Os meios e métodos de treino devem seguir rigidamente as
diretrizes e especificações de cada desporto, de acordo suas particularidades e
características.
A proximidade e similaridade das sessões de treinamento com
as situações específicas recorrentes ao jogo de futebol é o ponto chave do
princípio da especificidade.
Se não for específico, não é do esporte. Independente se a
carga aplicada for geral, específica ou especial, deve ser voltada para a
realidade imposta dentro da competição.
A especificidade esta relacionada diretamente com o padrão e
a intensidade dos exercícios relacionados ao movimento específico do desporto.
Contudo, um detalhe essencial esta relacionado ao direcionamento e o respeito a
esse princípio: o piso que se aplica o treino e o calçado que o atleta executa
a ação.
O atleta de futebol atua no gramado, vestindo chuteiras.
Essa é a regra básica para a aplicação de treinamentos relacionados às atividades
específicas do futebolista.
Treinos em parques, pistas de atletismo, campos de golfe,
praia, caixa de areia ferem o princípio básico e essencial do treinamento
desportivo, o princípio da especificidade.
Quanto maior a similaridade mecânica, maior o grau de
transferência. Para buscar um gesto motor relacionado os movimentos intensos e
curtos recorrentes do jogo de futebol, aliados aos aspectos técnicos do jogo,
ações inerentes ao treino devem ser direcionadas dentro do campo de jogo com os
atletas vestindo chuteiras.
Os treinos em outros pisos como parques, areia, quadras,
devem ser relacionados com outros desportos, específicos para o esporte
escolhido. Contudo para aprimoramento da condição física e técnica do
futebolista, de forma específica, o treino deve ser ministrado dentro do
terreno de jogo, com o material igual ou parecido com o utilizado na
competição.
Corridas em areia são específicas para esportes que são
disputados na areia, ações motoras em quadras são específicas para esportes que
competem em ginásio, e assim por diante.
Os treinos realizados em piso pouco denso, como a areia,
agem negativamente dentro dos componentes neuro-musculares, aumentando a ação
excêntrica e diminuindo a fase de transição entre os dois tipos de ação
muscular excêntrico para o concêntrico.
O treino em caixa de areia diminui o componente elástico da
musculatura do futebolista, ou seja, proporciona ao atleta de futebol, uma
perda da velocidade de reação e das suas respostas imediatas.
O futebolista nunca vai treinar especificamente em caixa de
areia, ou realizando corridas longas. O treino de resistência deve ser
realizado com treinos específicos com a bola, em campos reduzidos, treinos em
velocidade, entre tantos, sempre em alta intensidade, com períodos de recuperação
O treino específico para futebolistas sempre deve ser
realizado no gramado, com os atletas vestindo chuteiras e realizando os
movimentos parecidos com os executados nos jogos de futebol. Invertendo com
isso uma ordem até então universal no futebol que era a aplicação do treino com
volumes altos e intensidade baixa.
Atualmente para o ganho de resistência específica do
futebolista, o treino dever ter o caráter dinâmico e curto, com alta
intensidade e períodos curtos de recuperação, aliado a um volume baixo, para
produzir respostas positivas no organismo do atleta de acordo com a imposição
requerida no jogo de futebol.
O principio da especificidade deve ser aplicado em todos os
períodos do ano, desde os primeiros treinos no período preparatório geral, até
os últimos treinos do período competitivo.
O treinamento físico dentro do futebol brasileiro cada dia
mais ganha espaço, e com isso a responsabilidade dos profissionais que aplicam
treino aumenta. A aplicação de treinos específicos durante toda a temporada de
treinamentos, não é apenas importante, é uma obrigação dos profissionais da
preparação física no futebol.
*Sandro Sargentim é preparador físico de futebol e autor do
livro "Treinamento de força no futebol". Além disso, é docente no
curso de pós graduação em Treinamento Desportivo - UNiFmu/Gama Filho e
Treinamento Funcional - Ceafi e coordenador da pós graduação em Ciências no
Futebol - UniFmu.
Bibliografia
Bangsbo, J;
Mohr, M; Krustrup, P. Physical and metabolic demands of training and match-play
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Di Salvo et
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Gatz, G. Complete
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Helgerud,
J.; Engen, L.C.; Wisloff, U.; Hoff, J. Aerobic endurance training improves
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Hoff, J.;
Helgerud, J. Endurance and strength training for soccer players. Physiological
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Komi, P. V. Força e potência no esporte. Porto Alegre:
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Pivetti, B.M.F. Periodização Tática. O futebol arte
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Verkhoshanski, I. Força- Treinamento da potência muscular.
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