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Caxias Do Sul, Rio Grande do Sul, Brazil
Preparador Físico. Atualmente no Esporte Clube Juventude de Caxias do Sul/RS.

sábado, 2 de junho de 2012

A especificidade na aplicação do treino para futebolistas: a quebra de paradigmas e a necessidade de mudanças rápidas na forma de aplicação de treinos

Se não for específico, não é do esporte. Independente se a carga aplicada for geral, específica ou especial, deve ser voltada para a realidade imposta dentro da competição

Sandro Sargentim*

Nas últimas décadas muito se discute e se estuda sobre como avaliar, treinar e qualificar os treinos dos futebolistas. As análises são todas válidas, pois através delas, podemos saber com precisão como que o atleta de futebol se desloca, e de que forma, com qual intensidade, essa ação motora ocorre.

Um detalhe, contudo, é geralmente esquecido nas linhas de pesquisas e especialmente na sua aplicação prática: a especificidade dos treinos para atletas de futebol.

É comum observarmos clubes estruturados, com diversos profissionais de alto nível, compondo os departamentos médico, fisiológico e nutricional, aplicando treinamentos retrógrados e defasados com métodos inespecíficos para o movimento do futebolista em campo, tais como corrida longa contínua ou intervalada, treinos em caixas de areia ou na praia, e exercícios de musculação com aparelhos, em especial em cadeia cinética aberta.

As análises do volume e da intensidade do deslocamento do futebolista em um jogo são simples de ser entendidos e assimilados.

Os estudos recentes demonstram que, apesar do atleta de futebol se deslocar mais que 9 km em um jogo, a fase ativa da partida, onde de fato o atleta atua e decide o jogo de futebol (Sargentim, 2010), é disputada em uma metragem inferior a 1,5 Km, sob alta intensidade (Di Salvo e cols., 2007).

O futebolista permanece andando, caminhando, ou trotando sob leve intensidade cerca de 80 a 85% do jogo (Bangsbo, 2006). Nessa fase, a fase passiva, é o momento em que os futebolistas atuam sim no jogo de futebol, mas não decidem ofensiva e defensivamente o jogo. Nesse momento os atletas se recuperam dos estímulos fortes, intensos, dinâmicos e especialmente ultracurtos que compõem a fase ativa de futebol.

Os gestos específicos do futebolista são intensos e curtos não ultrapassando 4 segundos de execução (Helgerud e cols., 2001). Para cada ação motora de alta ou altíssima intensidade, o atleta de futebol recupera em uma partida em média 90 segundos (Hoff, J e Helgerud, 2004).

Ao analisar e compreender esses dados através dos estudos científicos coletados em jogos oficiais de primeiro escalão do futebol mundial, o questionamento aparece: Como ainda é possível profissionais que atuam aplicando treino no futebol, aplicarem treinos sem a menor transferência para as características do desporto?

O futebolista acelera em distâncias máximas de 20 metros em um jogo de futebol (Gatz, 2009), contudo a maior parte dos gestos realizados em aceleração não ultrapassa 10 metros em linha reta. As ações em velocidade na maior parte das vezes acontecem de forma acíclica, com mudança de direção, se caracterizando por desacelerações e novas acelerações na mesma ação.

Com esses dados em mãos podemos pontuar que os gestos específicos dos futebolistas em campo são caracterizados por uma reação rápida e curta com a mudança de direção, novamente potencializando a necessidade da reação rápida dos componentes neuromusculares dos futebolistas.

Esses gestos rápidos de aceleração e desaceleração são produtos da otimização das derivações da força explosiva, conhecido como um fenômeno natural definido como ciclo alongamento-encurtamento, que tem como regra básica a troca instantânea e precisa da ação excêntrica para concêntrica, também conhecida como pliometria (Komi, 2006).

Essa resposta transitória intensa, rápida e precisa, é caracterizada como a principal característica para a velocidade de reação e das respostas rápidas, essenciais para futebolistas.

Portanto, com base nesse panorama, como é possível pensarmos que times de futebol ainda se preocupam em correr em linha reta de forma cíclica contínua ou intervalada, se o jogo de futebol é caracterizado por acelerações curtas, desacelerações e gestos específicos com alta intensidade e curtas durações, com um período longo de recuperação?

Nesse caso poderei exemplificar a citação bem humorada, mais pertinente feita por Vitor Frade citada no livro do Bruno Pivetti “Para se tocar o piano, ninguém visualiza o pianista correndo em volta do referido instrumento musical para adquirir resistência no intuito de produzir belas melodias” (Pivetti, 2012).

Para elaborarmos um treino, independente do desporto, precisamos antes de focarmos em sobrecarga, individualidade biológica, parâmetros de avaliação física, entre outros igualmente importantes, o objetivo central e primordial deve ser elaborar treinos específicos para cada modalidade.

O futebol é um esporte e deve ser treinado seguindo princípios básicos e essências do treinamento desportivo. Não podemos aplicar treinos seguindo intuições ou padrões pré-definidos de acordo com experiências anteriores especialmente copiando treinos realizados nas décadas passadas.

Tudo evolui, desde a tecnologia, medicina, meios de transporte, comunicação, entre tantos. Os meios de aplicação dos treinos devem seguir sempre um processo de evolução e atualização, desde que siga critérios bem definidos e pautados dentro de diretrizes voltadas para cada área especifica.

Nesse caso não quero pontuar quem está certo nem errado. Longe disso. O objetivo dessa discussão é esclarecer uma atualização dentro do processo de treinamento específico no futebol.

O treinamento desportivo é pautado sob alguns princípios os quais se destacam a especificidade, a individualidade biológica e a sobrecarga.

Não é possível definirmos qual princípio do treinamento é o mais importante em relação ao outro, todos têm sua importância igualitária, e se completam de forma interdependente. Contudo antes de individualizarmos o treino e definirmos uma sobrecarga ideal, um fator é essencial para pontuarmos de forma exata nossa aplicação dos meios de treinamento.

O princípio da especificidade vem ao encontro dessa necessidade de simular os exercícios de acordo com a realidade e as demandas de cada modalidade. Isso não é novidade, há muitas décadas atrás Verkhoshanski já dizia “ deve se treinar como se joga e se compete…” (Verkhoshanski,1996).

Os meios e métodos de treino devem seguir rigidamente as diretrizes e especificações de cada desporto, de acordo suas particularidades e características.

A proximidade e similaridade das sessões de treinamento com as situações específicas recorrentes ao jogo de futebol é o ponto chave do princípio da especificidade.

Se não for específico, não é do esporte. Independente se a carga aplicada for geral, específica ou especial, deve ser voltada para a realidade imposta dentro da competição.

A especificidade esta relacionada diretamente com o padrão e a intensidade dos exercícios relacionados ao movimento específico do desporto. Contudo, um detalhe essencial esta relacionado ao direcionamento e o respeito a esse princípio: o piso que se aplica o treino e o calçado que o atleta executa a ação.

O atleta de futebol atua no gramado, vestindo chuteiras. Essa é a regra básica para a aplicação de treinamentos relacionados às atividades específicas do futebolista.

Treinos em parques, pistas de atletismo, campos de golfe, praia, caixa de areia ferem o princípio básico e essencial do treinamento desportivo, o princípio da especificidade.

Quanto maior a similaridade mecânica, maior o grau de transferência. Para buscar um gesto motor relacionado os movimentos intensos e curtos recorrentes do jogo de futebol, aliados aos aspectos técnicos do jogo, ações inerentes ao treino devem ser direcionadas dentro do campo de jogo com os atletas vestindo chuteiras.

Os treinos em outros pisos como parques, areia, quadras, devem ser relacionados com outros desportos, específicos para o esporte escolhido. Contudo para aprimoramento da condição física e técnica do futebolista, de forma específica, o treino deve ser ministrado dentro do terreno de jogo, com o material igual ou parecido com o utilizado na competição.

Corridas em areia são específicas para esportes que são disputados na areia, ações motoras em quadras são específicas para esportes que competem em ginásio, e assim por diante.

Os treinos realizados em piso pouco denso, como a areia, agem negativamente dentro dos componentes neuro-musculares, aumentando a ação excêntrica e diminuindo a fase de transição entre os dois tipos de ação muscular excêntrico para o concêntrico.

O treino em caixa de areia diminui o componente elástico da musculatura do futebolista, ou seja, proporciona ao atleta de futebol, uma perda da velocidade de reação e das suas respostas imediatas.

O futebolista nunca vai treinar especificamente em caixa de areia, ou realizando corridas longas. O treino de resistência deve ser realizado com treinos específicos com a bola, em campos reduzidos, treinos em velocidade, entre tantos, sempre em alta intensidade, com períodos de recuperação

O treino específico para futebolistas sempre deve ser realizado no gramado, com os atletas vestindo chuteiras e realizando os movimentos parecidos com os executados nos jogos de futebol. Invertendo com isso uma ordem até então universal no futebol que era a aplicação do treino com volumes altos e intensidade baixa.

Atualmente para o ganho de resistência específica do futebolista, o treino dever ter o caráter dinâmico e curto, com alta intensidade e períodos curtos de recuperação, aliado a um volume baixo, para produzir respostas positivas no organismo do atleta de acordo com a imposição requerida no jogo de futebol.

O principio da especificidade deve ser aplicado em todos os períodos do ano, desde os primeiros treinos no período preparatório geral, até os últimos treinos do período competitivo.

O treinamento físico dentro do futebol brasileiro cada dia mais ganha espaço, e com isso a responsabilidade dos profissionais que aplicam treino aumenta. A aplicação de treinos específicos durante toda a temporada de treinamentos, não é apenas importante, é uma obrigação dos profissionais da preparação física no futebol.

*Sandro Sargentim é preparador físico de futebol e autor do livro "Treinamento de força no futebol". Além disso, é docente no curso de pós graduação em Treinamento Desportivo - UNiFmu/Gama Filho e Treinamento Funcional - Ceafi e coordenador da pós graduação em Ciências no Futebol - UniFmu.

Bibliografia

Bangsbo, J; Mohr, M; Krustrup, P. Physical and metabolic demands of training and match-play inthe elite footbal player. Journal Sports Science, v.24, p. 665-74, 2006.

Di Salvo et al. Performance characteristics according to playing position in elite soccer. International Journal of Sports Medicine, v.28, n.3, p.222-7, 2007.

Gatz, G. Complete conditioning for soccer. Human Kinetics, 2009, p.197.

Helgerud, J.; Engen, L.C.; Wisloff, U.; Hoff, J. Aerobic endurance training improves soccer performance. Medicine Science Exercise. V.33, p.1925-1931, 2001.

Hoff, J.; Helgerud, J. Endurance and strength training for soccer players. Physiological Considerations. Sports Medicine; v.34, n.3, p.165-180, 2004.

Komi, P. V. Força e potência no esporte. Porto Alegre: Artmed, 2006. p.530.

Pivetti, B.M.F. Periodização Tática. O futebol arte alicerçado em critérios. São Paulo: Phorte. 2012. p. 296.

Sargentim, S.: Treinamento de força no futebol. São Paulo: Phorte. 2010. p.120.

Verkhoshanski, I. Força- Treinamento da potência muscular. Londrina, CID, 1996.